Histórias de vitimação contadas e recontadas por utentes psiquiátricos: Prevalência e análise da (in)consistência dos relatos
Mesquita, Cristina dos Santos
Tese
Tese de Doutoramento em Psicologia Aplicada
Introdução: A literatura tem mostrado que utentes psiquiátricos adultos apresentam
uma elevada prevalência de vitimação interpessoal autorrelatada, com consequências para a sua
saúde mental. Contudo, são apontadas várias limitações a este campo de investigação: os
estudos desenvolvidos têm-se focado em utentes com diagnósticos específicos de perturbação
mental e categorias individuais de vitimação, em fases específicas do ciclo de vida, limitando a
compreensão do papel da vitimação na saúde mental dos indivíduos, e não considerando
experiências de vitimação múltipla e revitimação que podem ocorrer ao longo de todo o ciclo
vital. Também se critica o facto de o estudo da vitimação psiquiátrica ser negligenciado, apesar
das suas consequências negativas imediatas para o bem-estar e recuperação dos utentes. Além
disso, vários autores têm ainda destacado a necessidade de o estudo da vitimação deslocar o
seu foco de interesse de estudos correlacionais para estudos causais, através do estudo de
mediadores e moderadores que clarifiquem a relação entre a ocorrência de vitimação e o
desenvolvimento de perturbação mental. Finalmente, têm sido apontadas limitações
metodológicas ao estudo da vitimação em utentes psiquiátricos pelo facto de a maioria dos
dados sobre vitimação ser obtida com recurso a autorrelatos, levantando preocupações
acrescidas com a validade e fidelidade da informação relatada na população dos utentes
psiquiátricos, dado os sintomas psiquiátricos poderem influenciar a informação relatada.
Objetivos: Partindo das limitações encontradas na literatura, definimos dois objetivos
gerais para este projeto: 1) conhecer as experiências de vitimação interpessoal, e 2) conhecer a
consistência temporal dos autorrelatos retrospetivos de experiências de vitimação interpessoal
em utentes psiquiátricos adultos.
Método: Os participantes são 120 adultos, com idades compreendidas entre os 20 e os
79 anos (Média – 47.22, DP – 13.102), utentes psiquiátricos de 4 hospitais do Norte de
Portugal. Sessenta e oito participantes (56.7%) são do sexo feminino, e 52 (43.3%) são do sexo
masculino. Aquando da avaliação, 80 participantes (67.5%) encontravam-se em regime de
internamento, e 40 (32.5%) em regime de consulta externa. A participação foi voluntária, tendo
todos os participantes facultado consentimento informado. Os participantes foram avaliados
relativamente ao funcionamento familiar na sua família de origem; diagnóstico de perturbação mental e sintomas psicopatológicos; vitimação simples, vitimação múltipla e revitimação na
infância, adolescência, idade adulta e ao longo da vida; vitimação psiquiátrica em utentes com
história de internamento psiquiátrico, e vinculação. Testámos o papel mediador da vinculação, e
o papel moderador de variáveis do funcionamento familiar na relação entre vitimação e
psicopatologia. Um subgrupo de 34 participantes foi ainda avaliado em dois momentos, com 9 a
12 meses de intervalo, para testar a consistência temporal dos seus autorrelatos de vitimação, e
testar o papel preditivo das mudanças nos sintomas psicopatológicos nas mudanças nos
autorrelatos.
Resultados: Considerando a totalidade dos participantes, verificámos que 89.2% relata
pelo menos uma categoria de vitimação ao longo da vida, e 80.9% relata 2 ou mais categorias. A
vitimação psicológica é a categoria de vitimação mais prevalente em todas as fases do ciclo de
vida, com mais revitimação ao longo da vida. Verificámos que 75.8% dos 95 participantes com
história de internamento psiquiátrico relata vitimação psiquiátrica. As análises realizadas revelam
ainda que a vinculação é um mediador significativo na relação entre vitimação e perturbação
mental, sendo que a doença mental parental e a adversidade familiar geral moderam a relação
entre vitimação e perturbação mental. Finalmente, constatámos que a consistência dos
autorrelatos de vitimação é baixa a moderada, sendo mais consistente para experiências
ocorridas na idade adulta. As mudanças nos sintomas psicopatológicos predizem mudanças nos
autorrelatos.
Conclusões: Os resultados obtidos destacam a importância de se estudar a
coocorrência de vitimação em utentes psiquiátricos, considerando a sua ocorrência ao longo de
todo o ciclo de vida. Os relatos de experiências de vitimação psiquiátrica sugerem a necessidade
de refletir sobre alguns procedimentos, considerados rotineiros, que podem por em causa a
perceção de segurança dos utentes, e comprometer o sucesso dos tratamentos e a sua
recuperação. A variância explicada pelos mediadores e moderadores analisados no nosso estudo
sugere a necessidade de se aprofundar o estudo de mecanismos explicativos da relação entre
vitimação e perturbação mental, focando fatores que possam ser alvo de modificação através de
intervenções, levando a uma prevenção da vitimação e a uma promoção do ajustamento
psicossocial. No que diz respeito ao estudo da consistência temporal dos autorrelatos, são
necessários estudos adicionais que permitam compreender melhor os fatores subjacentes a
relatos inconsistentes. São discutidas algumas limitações do estudo, com sugestões para
estudos futuros.
Introduction: The literature has shown that adult psychiatric patients present high
prevalence levels of self-reported interpersonal victimization, with consequences for their mental
health. However, several limitations are identified in this field of investigation: the studies
developed have focused on patients with specific diagnoses of mental disorders and single
categories of victimization, in specific stages of the lifecycle, limiting the understanding of the role
played by victimization in the mental health of the individuals, and disregarding experiences of
multiple victimization and revictimization that may occur throughout the lifecycle. The lack of
studies concerning psychiatric victimization is also criticized, despite the immediate negative
consequences for patients’ well-being and recovery. Also, several authors have pointed the need
for the study of victimization to move its focus from correlational studies to causal studies,
through the study of mediators and moderators that clarify the relationship between victimization
and the development of mental disorders. Finally, some methodological limitations have been
pointed to the study of victimization in psychiatric patients, due to the fact that most data of
victimization are obtained through self-reports, raising increased concerns with validity and
reliability of the information given by psychiatric patients, as their psychiatric symptoms might
influence the information reported.
Aims: Having in mind the limitations found in the literature, we define two main aims to
this project: 1) to know the experiences of interpersonal victimization, and 2) to know the
temporal consistency of retrospective self-reports of interpersonal victimization in adult
psychiatric patients.
Method: Participants are 120 adults, with ages between 20 and 79 years (Mean –
47.22, SD – 13.102), psychiatric patients from 4 hospital from the North of Portugal. Sixty-eight
participants (56.7%) are female, and 52 (43.3%) are male. At the time of assessment, 80
participants (67.5%) were inpatients, and 40 (32.5%) were outpatients. Participantion was
voluntary, and all participants provided informed consent. Participants were assessed for family
functioning in the family of origin; diagnosis of psychiatric disorder and psychopathological
symptoms; single victimization, multiple victimization and revictimization during childhood,
adolescence, adulthood and lifetime victimization; psychiatric victimization in participants with a history of inpatient psychiatric hospitalization, and attachment. We tested the mediator role of
attachment, and the moderator role of variables of the family of origin functioning in the relation
between victimization and psychopathology. A subgroup of 34 participants was also assessed in
two different moments, with a 9 to 12 month interval between assessments, to test the temporal
consistency of their self-reports of victimization, and to test the predictive role of changes in
psychopathological symptoms on changes on self-reports.
Results: Considering the whole sample, we found that 89.2% report at least one
category of lifetime victimization, and 80.9% report 2 or more categories. Psychological
victimization is the most prevalent category in all stages of the lifecycle, with more lifetime
revictimization. We found that 75.8% of the 95 participants with a history of inpatient psychiatric
hospitalization report psychiatric victimization. Analyses carried also reveal that attachment is a
significant mediator in the relationship between victimization and mental disorder, while parental
mental disorder and total household adversity moderate the relationship between victimization
and mental disorder. Finally, we found that the consistency of self-reports of victimization is low
to moderate, with higher levels of consistency for experiences occurred during adulthood.
Changes in psychopathological symptoms predict changes on self-reports.
Conclusions: The results highlight the importance of studying the occurrence of
victimization in psychiatric patients, considering its lifetime occurrence. The reports of
experiences of psychiatric victimization suggest the need to reflect about some procedures,
considered routine, that may jeopardize the patients’ perception of safety and compromise the
success of treatments and patients’ recovery. The variance explained by the mediators and
moderators analyzed in our study suggests the need for further study concerning the explanatory
mechanisms of the relationship between victimization and mental disorder, with a focus on
factors that can be modified through intervention, leading to the prevention of victimization and to
the promotion of psychosocial adjstment. In what concerns the study of the temporal consistency
of self-reports, additional studies are needed in order to better understand factors underlying
inconsistent reports. Some limitations of the study are discussed, with suggestions for future
studies.