Abuso sexual na infância e adolescência: uma leitura narrativa do impacto e dos processos conducentes à resiliência
Antunes, Carla Margarida Vieira
Tese
Tese doutoramento em Psicologia (área do conhecimento em Psicologia da Justiça)
A conceptualização teórica que fundamentou este estudo foi o modelo narrativo de White e
Epston (1990), tendo esta investigação dois objectivos centrais: (1) compreender o impacto do abuso
sexual sofrido na infância/juventude e (2) identificar os recursos que as crianças e/ou jovens abusados
possuem para a sua mudança espontânea em direcção à resiliência. Ambas as dimensões foram
analisadas à luz da grelha narrativa, procurando-se, num terceiro objectivo, de natureza mais teórica,
avaliar a adequação e contributos do modelo narrativo para a compreensão da experiência do abuso
sexual e dos processos de mudança que lhe estão associados.
Para tal, foram realizadas entrevistas qualitativas em profundidade com dezasseis crianças
e/ou jovens vítimas de abuso sexual, posteriormente divididos por dois grupos: crianças e/ou jovens
resilientes e não resilientes. Estas entrevistas foram posteriormente submetidas a um processo de
grounded analysis e a sua codificação foi validada por um juiz independente.
No que se refere ao impacto, os resultados revelam uma tendência para o aumento do impacto
negativo do problema após a revelação na maioria dos participantes em estudo. Especificamente, os
efeitos negativos predominantes são a vergonha/estigma, a culpa e o medo. Os discursos
sociais/culturais surgem também como uma variável que interfere nas significações que a vítima
constrói, sendo que as crenças e estereótipos de culpabilização da vítima tendem a estar associados a
maior sofrimento psicológico. Para além destes efeitos, as expectativas de justiça tornam-se
particularmente relevantes para as vítimas, sendo a condenação do ofensor encarada como uma forma
efectiva de validação da sua experiência abusiva.
Quando analisamos as diferenças nos efeitos do abuso em função dos dois grupos de
participantes entrevistados, resilientes e não resilientes, verificamos que, os participantes do grupo não
resiliente reportam: a) uma forte estigmatização associada a sentimentos de diferença interpessoal; b)
maior tendência para experienciar o medo como central na sua vivência do abuso; c) maior tendência
para se culpabilizarem pela manutenção do segredo em relação ao abuso; d) maior percepção do
abuso como uma armadilha/traição interpessoal; e) mais ansiedade face a relações futuras e receio
face à homossexualidade; f) maior ambivalência face ao processo judicial, ao mesmo tempo que o
consideram relevante para a validação da sua experiência abusiva.Relativamente à narrativa de mudança, globalmente, os resultados reflectem uma considerável
diversidade de momentos de inovação (isto é, momentos que escapam aos efeitos e prescrições do
abuso) reportados pelas vítimas. O MI mais saliente na nossa amostra é o de reflexão, enquanto os MIs
de reconceptualização são aqueles que apresentam uma representação mais reduzida. De salientar
que os recursos identificados pelas crianças para a mudança destacam o papel do grupo de pares, o
suporte parental e familiar e o apoio dos professores. Em termos de “recursos/aliados” pessoais para
a mudança, distinguem-se a revelação e o seu significado libertador, as expectativas de justiça, as
crenças religiosas e a construção de novas significações para o self, que reforçam a percepção de
competência pessoal e controlo.
Quanto à diferenciação dos grupos resiliente e não resiliente no que diz respeito aos momentos
de inovação, verificou-se que não existem diferenças significativas no que se refere à saliência dos
diferentes tipos de MIs, embora tenham sido encontradas diferenças significativas relativamente à
saliência dos subtipos do MI de protesto e no processo discursivo de retorno ao problema. Estes
resultados no que concerne à clarificação dos processos de mudança podem estar relacionados com
distintas hipóteses explicativas: a) uma elevada variabilidade intra-grupo no que se refere à frequência,
diversidade e saliência dos momentos de inovação; b) uma amostra de crianças/jovens cuja
capacidade para elaborar oralmente a mudança é desenvolvimentalmente distinta da dos participantes
adultos; c) os discursos da rede social e judicial destas crianças, centrados nas consequências
nefastas do abuso; e d) a grelha de codificação dos momentos de inovação, concebida para adultos e
que poderá não ser adequada às características desenvolvimentais dos participantes.
Em conclusão, o presente estudo reflecte a importância dos processos narrativos de
significação, que moldam o impacto do abuso e as trajectórias destas crianças/jovens em direcção à
resiliência. Sugere, ainda, indicadores importantes para a intervenção com estas vítimas,
nomeadamente no que diz respeito à compreensão do impacto do abuso sexual e das formas de
elaboração narrativa desta experiência que podem promover percursos mais adaptativos e
preferenciais para as vítimas, tanto espontâneos como por recurso à intervenção psicoterapêutica.