Perpetradores de violência em relações de intimidade: da caracterização à intervenção
Cunha, Olga Cecília Soares da
Tese
Tese de doutoramento do Programa Doutoral em Psicologia (ramo de conhecimento em Psicologia da Justiça)
A violência em relações de intimidade tem suscitado, nas últimas décadas, um enorme interesse
por parte da comunidade científica. Atualmente, o conhecimento em torno deste fenómeno é já
extenso, sendo possível identificar inúmeros estudos centrados nesta temática. Apesar da vasta
atenção que a violência na intimidade tem merecido, no contexto nacional o estudo do perpetrador
mantem-se ainda muito incipiente. De facto, a revisão da literatura nacional revela-nos que o interesse
científico no perpetrador de violência em relações íntimas surgiu bastante mais tardiamente, sendo a
nossa produção científica parca e restrita a pequenos grupos de trabalho. Estas lacunas foram
percetíveis não só ao nível da sua caracterização como também no que respeita à sua reabilitação.
Atendendo a estas lacunas, neste trabalho procurou-se caracterizar o perpetrador de violência
em relações de intimidade, ao nível dos comportamentos violentos perpetrados (dentro e fora da
relação íntima), da personalidade, psicopatologia e agressividade. Em paralelo, interessou-nos
compreender quais os fatores preditores quer da frequência quer da severidade da violência. Foi,
ainda, nosso propósito construir, implementar e avaliar a eficácia de um programa de intervenção para
perpetradores de violência na intimidade em contexto prisional e ambulatório. Por fim, procurou-se
compreender e refletir sobre a experiência subjetiva dos perpetradores acerca da intervenção, bem
como conhecer e descrever o processo de construção da mudança.
No primeiro estudo foram avaliados 187 indivíduos condenados e/ou sinalizados pela prática de
crimes contra uma parceira ou ex-parceira íntima, 76 na comunidade e 111 em estabelecimento
prisional. Da análise resultou que cerca de metade dos indivíduos apresentava consumos excessivos de
álcool, experiencias de vitimização e exposição a violência interparental na infância e adolescência.
Cerca de um quarto evidenciou sintomas psicopatológicos e menos de um quinto evidenciou traços de
agressividade. Os comportamentos mais frequentes foram os denominados de “violência menor” (e.g.
insultos, bofetadas) e a maioria dos sujeitos dirigiu a sua violência maioritariamente à parceira, sendo
que apenas um terço destes se envolveu em atos de violência extrafamiliar. Os dados permitiram ainda
identificar dois subgrupos: perpetradores institucionalizados e perpetradores na comunidade; e
perpetradores de violência severa e perpetradores de violência menos severa. Estes grupos
distinguiram-se essencialmente ao nível da violência perpetrada, sendo os perpetradores
institucionalizados e os perpetradores de violência menos severa os que evidenciaram mais
comportamentos de violência familiar e extrafamiliar. Por último, verificou-se que a violência íntima anterior, o uso de objetos, os traços de psicopatia do perpetrador e o nível socioeconómico baixo
surgiram como importantes preditores da frequência da violência; e a separação, o uso de armas e o
estatuto socioeconómico elevado apresentam-se como preditores da severidade da violência.
No segundo e terceiros estudos construiu-se, implementou-se e avaliou-se a eficácia de um
programa de intervenção com perpetradores de violência na intimidade. No programa participaram 21
indivíduos da comunidade e 7 institucionalizados, tendo-o finalizado com sucesso 16 indivíduos da
comunidade e 4 institucionalizados. No grupo comunitário, verificaram-se reduções significativas no
risco de violência conjugal, na violência física e psicológica, nas atitudes legitimadoras da violência
conjugal, na agressividade e na sintomatologia psicopatológica. Ademais, observou-se um incremento
significativo na autoestima, autoconceito e resolução de problemas. As mudanças foram mantidas no
período de follow-up a 6 meses. Quando comparados com os indivíduos do grupo de comparação os
resultados do grupo comunitário revelaram-se significativamente superiores. Por seu turno, os
participantes do grupo institucionalizado não revelaram mudanças significativas.
No último estudo, que consistiu na análise de entrevistas realizadas aos 16 indivíduos da
comunidade que concluíram com sucesso o programa de intervenção, procurou-se aprofundar o
conhecimento sobre os significados decorrentes da experiência de participação em intervenção e
compreender o processo de mudança. Através da Grounded Analysis, emergiram três categorias
centrais das narrativas dos participantes: (1) experiência em intervenção psicoterapêutica (expectativas
pré-intervenção e reflexões sobre o processo psicoterapêutico); (2) mudanças em intervenção
psicoterapêutica (reflexões acerca das mudanças, emergência de novas competências e desempenhos
alternativos ao problema, reconhecimento de vulnerabilidades individuais após intervenção); e (3)
facilitadores da mudança (grupo como suporte à mudança, intervenção/aprendizagens adquiridas,
investimento individual, outros significativos, mudanças da companheira e figura do
facilitador/dinamizador). Partindo de uma análise integrativa destes dados, desenvolvemos um modelo
teórico com vista a aprofundar o conhecimento acerca do processo de mudança em indivíduos
submetidos a intervenção direcionada para a problemática da violência íntima.
A presente dissertação reflete a natureza complexa e multideterminada da violência em relações
de intimidade, bem como a premência e necessidade de atuação junto do perpetrador de violência,
sendo discutidas no final deste trabalho algumas das implicações para a prática profissional e empírica
decorrentes dos resultados obtidos.
Intimate partner violence has raised, in the last decades, a huge interest by the scientific
community. Presently, the knowledge about this phenomenon is already extensive and is possible to
identify numerous studies on this topic. Although a high attention is being given to intimate partner
violence in the national context, studies focused on the perpetrator remain very incipient. Actually, the
revision of national literature shows that the scientific interest on the perpetrator of intimate partner
violence emerged quite late, being our scientific production scarce and restricted to small work groups.
These shortcomings have been identified not only in terms of their characterization but also regarding
rehabilitation.
Given these gaps, this study sought to characterize the perpetrator of intimate partner violence,
in terms of violent behaviors perpetrated (inside and outside the relationship), personality, psychopathy
and aggressiveness. At the same time, we became interested in understanding what were the predictive
factors of violence frequency and severity. It was also our purpose to build, implement and assess the
effectiveness of an intervention program for perpetrators of intimate partner violence in the community
and in prison. At last, we tried to understand and reflect about the perpetrators subjective experience
about intervention, as well as identify and describe the change construction process.
In the first study 187 subjects condemned and/or signalized by intimate partner violence against
an intimate partner or ex-partner were assessed, 76 in community and 111 in prison. The analysis
showed that about half of the subjects presented alcohol abuse, victimization experiences and exposure
to interparental violence during childhood and adolescence. About a quarter of the individuals had
psychopathology and less than one fifth had aggressiveness traits. The most frequent behaviors were
those termed as "minor violence" behaviors (e.g. insults, slaps) and the most part of the subjects
directed their violence toward the partner, and only one third of those engaged in acts of violence
outside the family. Data allowed us to identify two groups: perpetrators institutionalized and perpetrators
in the community; and perpetrators of severe violence and perpetrators of less severe violence. These
groups distinguished themselves mainly in terms of violence level, being the institutionalized
perpetrators and the perpetrators of less severe violence those who showed more behaviors of intra and
extra familial violence. At last, previous intimate partner violence, the use of objects, psychopatic traits
and low socioeconomic level appeared as the most important predictors of intimate partner violence frequency; and separation, use of weapons and high socioeconomic status appeared as predictors of
intimate partner violence severity.
In the second and third studies an intervention program with perpetrators of intimate partner
violence was built and implemented, and its effectiveness was assessed. In the program participated 21
subjects from the community and 7 individuals from prison. Among them, 16 individuals from
community and 4 individuals from prison finished the intervention successfully. The community group
showed a significant reduction in spouse abuse risk, physical and psychological violence, attitudes
toward domestic violence, aggression and psychopathology. Additionally, we observed a significant
increase in self-esteem, self-concept and problems solving. The changes were sustained at the 6 month
follow-up. When we compared the community group with the comparison group, results from
community group revealed to be significantly higher. On the other hand, participants from
institutionalized group did not show significant changes.
In the last study, which consisted of the analysis of interviews conducted with the 16 individuals
in the community who had successfully completed the intervention program, we sought to deepen the
knowledge about the meanings arising from the experience of participating in the intervention and to
understand the process of change. Through Grounded Analysis three main categories emerged from the
participants’ discourse: (1) experience in psychotherapeutic intervention (pre-intervention expectations
and reflections about the psychotherapeutic process); (2) changes in psychotherapeutic intervention
(reflection about the changes, emergency of new abilities and alternative performances to the problem,
awareness of individual vulnerabilities post intervention); and (3) change facilitators (group as a support
to change, intervention/learning acquired, individual investment, significant others, partner changes
and facilitator). From an integrative analysis of these data, we developed a theoretical model to deepen
the knowledge about the process of change in individuals undergoing intervention directed to the
problem of intimate partner violence.
This dissertation reflects the complex nature of intimate partner violence as well as the urgency
and need for intervene with the perpetrator of intimate partner violence, being discussed at the end of
this work some implications for professional practice resulting from the empirical data obtained.
Apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através da atribuição de Bolsa de Investigação com
a referência SFRH/BD/66110/2009, financiada pelo POPH - QREN - Tipologia 4.1 - Formação
Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES.